Serginho, o mais carismático atleta de vôlei do Brasil – talvez do planeta –, de 41 anos, torcedor do Corinthians, bicampeão olímpico (Atenas-2004 e Rio-2016), considerado o maior líbero da história da modalidade, tem um sonho, até simplório: parar de jogar. Mas a sua condição de atleta de alta performance o tem impedido de parar de viajar, de ficar mais tempo com os três filhos, e ainda o faz sofrer as tensões dos torneios e das concentrações e das cobranças naturais de torcedores. Isso porque ainda joga muito bem, o físico está ótimo e ainda tem uma grande alegria em entrar na quadra – e se divertir muito.
De bem com a vida, aposentado da seleção brasileira de vôlei, algumas coisas ainda o incomodam, como a situação econômica pela qual o Brasil passa, as vias tortuosas que o esporte, e o vôlei em especial, tomam e a falta de uma geração de atletas que assuma o lugar dos veteranos com a mesma qualidade técnica.
Em quase uma hora de conversa, Serginho – ou Escadinha, apelido que traz da adolescência -, o titular do time do Sesi de São Paulo falou sobre a glória de ser campeão olímpico e também de como esse sucesso é efêmero. E confessou ter uma relação muito difícil com… alongamentos antes dos treinos.
O que mudou na sua vida ao conquistar a segunda medalha de ouro olímpica?
Tem aumentado o número de pedidos de participação em eventos. Já pintou de tudo. As pessoas confundem as coisas, pedem para ir no aniversário do amigo do amigo. Mas a minha vida não mudou. Não ando com minhas medalhas penduradas no pescoço quando vou ao banco, ao shopping. Continuo morando no mesmo bairro, vou buscar meus filhos na escola, meus amigos são os mesmos. Meu tempo livre é no domingo, quando procuro ficar com a família. Mas sempre tenho algo para fazer: algum evento, palestra ou clínica de voleibol. Em fevereiro, até os domingos foram tomados.
E o que diz nesses eventos?
Que ser campeão olímpico em casa significa muito, e que existiu uma história por trás disso tudo. A medalha está lá em casa, mas o que importa é contar a experiência dessa Olimpíada: a emoção de vencer, fazer 3 a 0 na Itália. O pessoal acha que foi fácil. Não foi, muito pelo contrário. Tento passar uma mensagem positiva a partir dessa experiência de recuperação.
O time sentiu muito a pressão de jogar em casa?
Foi uma pressão diferente. Dessa vez éramos cobrados nas ruas, no shopping, no supermercado. Ou seja, tínhamos de ganhar os Jogos antes de entrar em quadra, e isso não é fácil. Mas não a senti muito porque entro na quadra para me divertir. Não importa se é final de campeonato ou amistoso. A pressão sempre estará lá. Ela existe a partir do momento em que se veste a camisa da seleção. Estamos representando milhões de brasileiros. Se entrar com essa responsabilidade nas costas, com esse "medo", não dá para jogar nada.
O senhor disse que adora jogar com torcida contra. Dessa vez, como o Brasil não era o time mais forte, a torcida foi importante?
Disse isso baseado nas conquistas que tivemos, todas fora de casa. Lembro quando jogamos uma fase final de Liga Mundial em 2003, no Mineirinho (em Belo Horizonte) e perdemos. Depois, acho que em 2008, no Maracanãzinho, nem nos classificamos para a final. Jogamos contra a França de novo no Maracanãzinho em 2015 e não conseguimos nos classificar. Então, pelo retrospecto, achava melhor continuar jogando fora. Mas na Olimpíada as seleções sofreram com a nossa torcida. Ela foi o sétimo jogador, não esperava tanto apoio. E foi assim em outras modalidades, como no futebol…
O que acha da situação das instalações olímpicas?
É triste. Se me perguntassem antes dos Jogos se eu apoiaria a Olimpíada em casa, diria que não. Tínhamos condições de fazer o evento? Tínhamos, mas pela situação do nosso pais, acho que o dinheiro deveria ter sido gasto a começar pela saúde e educação. Penso como cidadão. Não é por ser atleta que devo pensar que o dinheiro tenha de ir para o esporte. É preciso ter prioridades. Não podemos chegar num pronto-socorro de hospital e ver gente morrendo no corredor, sem leito. Gastaram todo o dinheiro em uma instalação que não está sendo usada. Esses locais de competição deveriam ter outras utilidades: que se construa um hospital no Parque Olímpico, uma escola. Veja o caso do Maracanãzinho: é um ginásio que respira esporte, respira o Rio de Janeiro. Nem ele pode ficar parado. Mas se um dia decidirem que o Maracanãzinho precisa na verdade ser uma garagem para peruas escolares, que seja. Se for para o bem da população, sou a favor. Não dá para compactuar com algumas coisas porque sou do esporte.
E a situação do voleibol?
O país sofre em todas as áreas, não é só no voleibol. Pegue o exemplo de outros esportes, como o handebol. O Brasil foi campeão mundial feminino, e alguém fala de handebol? E do atletismo? Ninguém sabe nada. Perto da Olimpíada parece fácil, todo mundo apoia, mas durante o ciclo olímpico, ninguém vai aos treinos, ninguém apoia. No período em que o atleta mais precisa o apoio some.
Mas hoje é muito mais fácil ingressar no voleibol do que na sua época de novato, certo?
Sim, mas a geração vem caindo tecnicamente. O nível está muito ruim. Não sei a causa. Há uma década, todas as nossas seleções de base eram campeãs sul-americanas, até mundiais. Hoje, não somos mais. O nível técnico dessa molecada que está subindo é muito ruim. Para um país tricampeão olímpico e mundial, que dominou o vôlei mundial pelos últimos 15 anos, o nível está muito ruim.
A gestão é ruim?
Se é bem gerido não sei. Mas falta muita coisa, principalmente para os clubes. Falta disposição das marcas, possíveis apoiadores. Tome como exemplo os americanos. Com eles, publicidade é tudo, marketing é tudo. Veja a final do Super Bowl, por exemplo. O voleibol é um produto muito bom. Você pode levar tranquilamente os filhos e avós a um jogo que não vai sair briga. Vai se divertir, não paga nada para assistir e vai sentir muita emoção e diversão. É um esporte muito legal como produto, mas pode ser bem melhor.
E como pensa em ajudar? Como dirigente? E tudo aquilo que aprendi em quadra vou passar para quem?
Não penso em ser cartola. Minha missão é com a bola, quero estar praticamente dentro da quadra. Não posso morrer com todos esses fundamentos guardados. Outro dia fiz uma transmissão ao vivo pelo meu Instagram, e o Gustavo (Endres, campeão olímpico em Atenas-2004) entrou. Falei para ele: 'Gustavo, você precisa dar treino de bloqueio'. O cara foi um dos maiores bloqueadores do mundo. Ele não pode ficar lá em Canoas sem fazer nada quando poderia estar ensinando a seleção a bloquear. Ele tem a função dele no time de Canoas, tudo bem, mas não pode ficar só lá, tem de estar na seleção brasileira. Precisamos de ex-atletas que foram referência em suas posições para explicar, ensinar, orientar. Todos ganhariam com isso. O Anderson esteve conosco na seleção nos treinos neste ano. Ele jogou muito como oposto, foi campeão olímpico, e nos ajudou muito.
O Centro de Treinamento que está montando em Pirituba servirá para passar esse conhecimento?
Meu grande sonho é enfiar minha cabeça naquele CT 24 horas por dia. Isso fará bem a mim e a todos aqueles que amam o voleibol. Para as pessoas que sonhavam em ser jogadores, mas que se tornaram profissionais em outras áreas. Esse é o plano, voleibol para qualquer idade, de 0 a 100 anos. Muitas pessoas que jogam vôlei aos finais de semana e que sonharam em ser atletas de alto nível vão ter a oportunidade de treinar. Vai ser prazeroso.
E como andam as obras?
Chegou o piso, do mesmo tipo usado na quadra olímpica, e com a liberação da alfândega vamos começar a montar. Creio que em uns dois meses estaremos funcionando.
Falta realizar algum sonho?
Parar. Se fosse por mim, eu parava de jogar amanhã. Mas meus filhos não querem. Eles são os primeiros a chegar no Sesi, na Vila Leopoldina (bairro de São Paulo), para me ver jogar. Se faço um lance bacana, eles se divertem. Minha mãe tem uma cadeira cativa no Sesi. Depois de um jogo, encontro muita gente que me pede para não deixar a seleção, dizem que vão ao Sesi para me ver. Acho que estão mentindo, eles vão lá para ver o Bruninho (risos). Enquanto for divertido, vou continuando. Falo para as pessoas que meu prazo de validade esta chegando. Em breve, passo do vencimento.
O corpo ainda aguenta?
Não sei se sou igual a um bom vinho, mas cada dia que passa eu estou jogando melhor. Entra geração, sai geração, e eu continuo em quadra. Sou um atleta contemplado na questão física. Tive apenas uma grande lesão, em 2010, mas depois não tive problema. Claro que ser líbero ajuda, mas não bebo, não fumo, sempre cuidei muito do meu corpo. A única coisa extravagância que tenho é comer chocolate, e disso não vou abrir mão. Já falei para a nutricionista que ela pode berrar, brigar, mas não tire o meu chocolate. Outra coisa é dormir. Temos 1h30 de descanso entre uma sessão e outra de treinos, e então procuro dormir. Isso também ninguém me tira. Eu me tranco no quarto e nem meus filhos entram. Eles já sabem que o pai vai dormir antes de voltar ao treino.
Esse adiamento de aposentadoria tem a ver com necessidades financeiras?
Não, acho até que se parar agora posso ganhar mais dinheiro do que se continuar jogando, tenho muitas propostas. Apesar de poder suar menos e ganhar mais, não é o que quero para a minha vida. Nunca liguei para dinheiro.
Mas deve ter algo que o chateia nessa rotina. Tem, alongar. Para falar a verdade, nunca alonguei. Hoje, ainda menos, só converso… Não dá, sou old school: faço dois movimentos com o braço e estou pronto para jogar. Até os técnicos entendem que eu não gosto de alongar.
E fora de quadra, o que o incomoda?
Nada. Se estiver na praia e me chamarem pra jogar um vôlei de areia vou topar e ainda vou rir muito.
Não perde a paciência com nada mesmo?
Tive uma infância que não foi fácil. Cresci em um bairro com muita gente difícil e, querendo ou não, aprendi a ser ruim. As pessoas falam: "Ah, o Serginho é bonzinho." Sou bom com quem é bom comigo. Sei separar as coisas. Hoje, muita gente do voleibol tem até medo de chegar perto de mim, porque conhece meu jeito. Não gosto de coisa errada. Quando vejo algo que não me agrada, falo na hora. Muita gente do esporte vem falar comigo, pedir conselhos para dentro e fora de quadra. Não sou gerente de conflitos, mas atraio perguntas desse tipo.
Isso deve incomodar mais então?
Às vezes dá vontade de chegar e falar: "Eu não sou a solução do seu problema." Outro dia, estava na padaria tomando um café, um homem me viu e logo veio falar sobre o filho, que jogava futebol e que por isso precisava da minha ajuda. Pedi desculpas e falei que jogava vôlei, não futebol. Não conheço quem pudesse colocá-lo nesse meio, meu conhecimento é zero no futebol. Torço para o Corinthians, conheço alguns jogadores de futebol, mas como vou ajudar essa pessoa? Para todo pai o filho é o melhor. Em uma outra oportunidade, nessa mesma padaria, um rapaz me parou e pediu ajuda porque seu filho era cantor de funk. Fiquei pensando: "O que eu tenho a ver com a música?" Não sou a solução do problema das pessoas. É como pedirem ao Bernardinho que treine o Corinthians ou que seja presidente do Brasil. Ele pode até se preparar, sei que tem capacidade para isso, mas é muito difícil. Se essas coisas chegam a mim, imagina as que chegam para o Bernardo…
Por falar no Bernardinho, como você viu a saída dele da seleção?
Ele tinha questões familiares, precisava cuidar de si. E qual a motivação para continuar na seleção? Qual a motivação para um treinador que ganhou duas Olimpíadas, ganhou Mundial, todos dos maiores títulos da modalidade?
E a chegada do Renan Dal Zotto?
uma decisão das pessoas à frente da Confederação. A vontade do Bernardo era que o Rubinho (seu auxiliar) assumisse e ele tinha condições. O Renan jogou muito bem, como atleta é indiscutível, mas vai ter de provar ser bom técnico. Ele já treinou algumas equipes, foi campeão, conhece os jogadores e, afinal, temos de respeitar essa decisão. Não é um nome ruim, mas acho que não vai ser fácil essa transição, porque a pressão será muito grande. As pessoas vão comparar e isso pode prejudicar. Desejo toda a sorte do mundo ao Renan, que toda aquela competência dos tempos de jogador apareça agora como técnico, para ajudar essa molecada, porque não vai ser fácil.
Por Alexandre Salvador e Silvio Nascimento para VEJA.COM
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